Ciça Camargo
desenhos e pinturas
Curadoria por Leonel Kaz

Brotou, espontânea, à beira do mar da Bahia, o primeiro contato com a obra de Ciça.
Estávamos, France e eu, andando pela praia, quando ouvimos a voz de Paulo Fernandes, galerista, nos convocar. Ele estava, à sombra de uma frondosa amendoeira, ao lado de Ciça e Henrique. Conversa vai, conversa vem - animados por algumas caipirinhas - da amendoeira ao atelier foi um pulo.
Houve um espanto de pronto, diante das obras de Ciça: o conjunto delas compunha uma mesma tessitura, um mesmo bailado, uma mesma singularidade - pululantes sobre a superfície do papel ou sobre a tela estendida.
Lembrei-me de Matisse pintor e desenhista, que não via diferença entre o ato de pintar ou desenhar.
O que via eram amplas pinturas e desenhos repletos de borras de café, serragem e nanquim colorido formando uma parceria, longilínea, entre materiais e cores escorridas. Cores em comunhão, todas efusivas, animadas, mirabolantes, dando-se as mãos, como nas famosas Cirandas: as de Matisse.
"A ciranda é uma confraternização. Todo mundo dá-se as mãos, na maior harmonia, na maior satisfação, na maior alegria. A ciranda não tem preconceito. Dança branco, preto, criança, velhos. Caiu na Roda, dança. A ciranda é uma força muito grande, eu me sinto muito feliz cantando", ensina a curandeira Lia de Itamaracá, 80 anos, considerada "Patrimônio Vivo de Pernambuco".
Leonel é jornalista, curador e editor da UQ Editions que realiza livros de artistas. No conjunto, editou ou foi co-autor de 50 obras editoriais sobre arte, literatura e história do Brasil.

Galeria das obras
Leonel:
Ciça:
Ciranda lembra infância e, no caso de Ciça, o cheiro do café, como ela relembra:
- O café sempre foi um elo com meu pai: uma pessoa ritualista. P café era o momento em que estávamos juntos.
Ele gostava de ser servido; como sou a caçula de seis irmãos, eu me achava muito importante quando podia levar o café a ele. Já de minha mãe lembro as histórias da fazenda, como a alegria que ela sentia ao narrar as floradas do café.
Leonel:
O café é aroma, sentimento, história e, no caso, o material de que Ciça se utiliza em suas pinturas:
Ciça:
- Na verdade, a maior raiz minha do café veio de uma fazenda da família do Henrique. Meus filhos nasceram naquela história, tenho três filhos! O café e tudo o mais foi se enraizando em mim por conta de meus experimentos com areia de praia, pigmentos do Marrocos...um dia me deu vontade de pintar com o café. Fui deixando o óleo, a acrílica e usando os materiais mais naturais.
Leonel:
Ciça:
Ciça é vocacionada à pintura e, ao lado do marido Henrique, à proteção ambiental:
- Lá no Mato Grosso, participamos, com um casal de amigos, de um belo projeto de uma escola - o Jatobazinho - coisa linda e eficiente. Também ao lado de outro grande grupo, contribuímos com todo um corredor verde visando à proteção da flora e fauna, incluindo a preservação da onça-pintada.
Leonel:
O atelier de Ciça é um lugar privilegiado em São Paulo: um projeto arquitetônico feito com conteiners de aço, estruturados uns sobre os outros, deixando passar muita luz natural. Na lateral direita e ao fundo do terreno, há uma mata atlântica preservada. Imerso na natureza, numa das vezes em que lá estive, um imenso jacu - pássaro importante na produção de café - veio pousar na cerca. Conta Ciça:
Ciça:
- Sempre que venho pintar, gosto de estar sozinha, gosto de abrir o atelier, respirar fundo, me envolver. Vou tentando não pensar...e aí a pintura dá certo quando consigo interagir: eu e a tela em branco. Às vezes, o que ali se plasma ou se conta, em tela ou papel, vem de alguma coisa vivida, ou que li ou vi num filme e me tocou.
Aquilo me pega e já venho com isto na cabeça: vou usar o nanquim preto, a serragem X, vou por aqui, vou por ali.
A continuação disto é uma conversa da pintura comigo e dela (pintura) com ela mesma: da mesma forma que palavra puxa palavra, uma cor vai pedindo outra cor.
- Eu assumo o que gosto de fazer: deixar esta força bruta rolar, por exemplo. Acho que as pessoas, todas, precisam ter um pouco mais de tempo para se dedicar a olhar.
Este despojamento de olhar para um mesmo quadro e vê-lo, de forma distinta, a cada vez. Ter um despojamento de tempo entre você e a obra. Para nossa exposição, até tive a idéia de comprar uns banquinhos, destes de papel cartonado, leves, que se pode levar de um canto a outro, e pedir ao visitante para sentar em frente a cada tela, uma a uma, e eu dizendo a ele: "Olha um pouco, senta aí, fique aí!"
- Você sabe que eu sinto que o maior prazer que meu pai me proporcionou talvez, não esteja no café, como falei antes, mas, sim! na alegria de viver. Meu pai dizia assim pra mim: "Você resolveu ser mãe, não é? Pois o que você precisa ter é alegria de viver para passar pra eles, teus filhos."